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Violência policial e sub-representação política ameaçam direitos civis dos negros

IGUALDADE DISTANTE

 

O direito ao voto não é sinônimo de inclusão política e social. Cinquenta anos depois da aprovação da Lei dos Direitos Civis, que universalizou o sufrágio nos Estados Unidos, as estatísticas mostram barreiras que persistem aos avanços dos direitos civis da população negra. Restrições à cidadania dos afrodescendentes americanos que ameaçam o campo eleitoral por causa da decisão da Suprema Corte, que invalidou em 2013 parte da lei de 1965. Nove estados americanos de histórico racista não precisam mais pedir autorização para alterar o sistema de votação. Com essa flexibilidade, segundo o Brennan Institute, só em 2015 já surgiram 113 medidas de restrição ao voto em discussão no Congresso, como a exigência de documentação que as minorias têm dificuldade em conseguir e o limite do acesso dos ex-presidiários às urnas.

 

O risco de retrocesso se dá num cenário em que os afro-americanos são as principais vítimas da violência e sofrem com a seletividade da repressão policial. Em Nova Iorque, por exemplo, 80% das pessoas abordadas pela polícia têm a pele negra. Isso se reflete na própria composição carcerária americana: a cada 12 detentos, 11 são negros, o que representa um risco seis vezes maior de serem presos em relação aos cidadãos brancos.

 

No Brasil, o panorama dos direitos civis da etnia negra não é diferente. A população carcerária, que aumentou 74% em dez anos, é composta por sete afrodescendentes em cada 10 detentos. Eles são, ao mesmo tempo, o maior alvo da violência no país. Segundo a Unesco, o homicídio de negros cresceu 32,4% desde 2007. O Sistema de Informação sobre Mortalidade e o Censo Demográfico do IBGE apontam que, enquanto a taxa de assassinato de negros era de 36 em cada 100 mil, entre os brancos o índice cai para 15. Diante desses dados, o Congresso brasileiro instalou a Comissão Parlamentar de Inquérito da Violência contra o Jovem Negro.

 

A Lei dos Direitos Civis, assinada pelo então presidente Lyndon B. Johnson em 1965 pôs fim ao período de segregação racial institucionalizada nos Estados Unidos. Esta norma federal passou a controlar os sistemas eleitorais de cada estado do país para garantir a universalidade desse dever cívico. O texto da lei proibiria pré-requisitos que restringissem o acesso às urnas, como o impedimento do voto por causa da raça ou histórico de servidão. Também foi negada a cobrança de taxas eleitorais, que afetavam a camada popular mais pobre, formada na maioria por negros.

 

Em 1870, o Congresso americano já tinha aprovado a 15ª Emenda à Constituição, que previa direitos civis para todos os americanos. Mas foi apenas há cinquenta anos que o sistema se tornou eficaz, a partir dos protestos liderados por Martin Luther King, no Movimento pelos Direitos Civis.

 

Mas os avanços não foram suficientes. A seletividade da repressão pela cor da pele tem levado novamente milhares de afro-americanos para as ruas. Uma abordagem violenta que permanece, em geral, impune nos dois países, pela falta de provas e por um preconceito enraizado na polícia e na sociedade. A morte de Alan de Souza, de 15 anos, no Rio de Janeiro, e de Freddie Gray, de 25 anos, em Baltimore, são exceções à regra. Nesses casos, ambos filmados, os policiais foram indiciados por homicídio. Enquanto a política brasileira aprova as políticas de ação-afirmativa, como as cotas para o ensino universitário e cargos no Judiciário, a tendência americana é retirá-las do sistema por julgar que já cumpriram o papel de equalizar oportunidades.

 

Enquanto nos Estados Unidos a segregação explícita forçou a comunidade negra a formar uma identidade própria como resistência, no Brasil, o mito da democracia racial maquia a desigualdade dos direitos civis. Segundo o deputado federal Jean Wyllys (Psol-RJ), o paísl precisa, antes de tudo, reconhecer que é um país racista. Já o doutor em História Social Carlos Alberto Medeiros constata que, se não existe identidade negra na sociedade brasileira, muito menos existirá na política nacional. A representação no Congresso é desproporcional ao tamanho da população afro, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos.

ANDRESSA HERNANDES

BÁRBARA BAIÃO

BRUNO TORTORELLA

CAMILA CORIOLANO

DANIELLE CHAN

DIEGO MELLO

DIOGO HONORATO

ELSA MAFFIA

FERNANDA ARAGÃO

JULIA COPLE

LAYSSA SOARES

LOLA FERREIRA

LUANA MONTONE

LUCIANA LACERDA

MANUELA BOMFIM

MARINA FERREIRA

NATHALIA MARINS

NICOLE CRIVOI

Vídeo: 50 anos do direito ao voto negro nos Estados Unidos

Maré conservadora propõe 113 leis restritivas ao voto a um ano das eleições americanas

 

A um ano das eleições gerais, a disputa política americana centraliza, mais uma vez, o sufrágio universal. De olho na Presidência de 2016, os democratas priorizam os afro-americanos e latinos, enquanto os republicanos querem estreitar o sistema eleitoral sob o argumento de evitar fraudes. Até junho deste ano, segundo o levantamento do “Brennan Center for Justice”, foram pelo menos 113 leis restritivas ao voto propostas em 33 estados. Apesar da movimentação de expandir o voto ser maior – são 464 projetos em 48 estados – analistas políticos alertam para o retrocesso dos direitos civis, especialmente dos afro-americanos e demais minorias.

 

Isso foi possível porque, em 2013, a Suprema Corte invalidou a parte da Lei dos Direitos Civis que impedia nove estados historicamente racistas de organizarem um sistema eleitoral próprio. A partir dessa decisão, Alabama, Alasca, Arizona, Georgia, Louisiana, Mississipi, Carolina do Sul, Texas e Virginia só teriam intervenção federal em caso de leis discriminatórias explícitas. Na visão de Carlos Alberto Medeiros, a anulação da seção 4 da 15ª Emenda representa uma tendência conservadora da própria Suprema Corte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

— Nos Estados Unidos houve um recuo, especialmente no começo da década de 1980, com a maré conservadora que foi tomando conta do país. Isso se refletiu na nomeação dos juízes da Suprema Corte, e essa predominância conservadora se manteve até hoje. Com a decisão, os estados começaram a estudar medidas para dificultar o acesso ao voto de negros e latinos. Ou seja, essa mudança na lei é sim um retrocesso, assim como certas políticas de ação afirmativa que a alta corte vem derrubando ou restringindo recentemente.

 

No ano seguinte à flexibilização da Lei Eleitoral, os dados do “Brennan Center for Justice” apontam que esses mesmos estados adotaram medidas restritivas em relação ao voto. A Carolina do Sul passou a exigir provas de cidadania americana, o Alabama endureceu o processo de registro para votar e passou a exigir um equivalente a título de eleitor com foto. A Georgia reduziu o período de votação aberto antes do dia oficial da eleição, enquanto Arizona e Carolina do Sul reduziram o prazo para escolher um representante nos dias seguintes ao pleito.  

 

O estado da Virginia, ainda em 2014, aprovou a ampliação de uma burocracia maior em torno do voto. Argumentavam que a falta de fiscalização permitiria, por exemplo, que um eleitor votasse mais de uma vez. Assim, haveria mais registros que cidadãos aptos a votar. Ativistas republicanos defenderam, na época, que fossem retirados das listas de votação pessoas que morreram, mudaram de estado – como o poder federal já previa – mas também pessoas que cometeram crimes. Há relatos, nesse processo, de eleitores legítimos removidos.

 

Na linha de frente das medidas de restrição está a exigência de uma identificação oficial, o Voter ID. Segundo levantamento do “Brennan Center for Justice”, apenas 11% dos votantes americanos não têm a documentação exigida por essa lei – hoje vigente em 32 estados. A principal candidata democrata nas primárias à eleição presidencial de 2016, a ex-secretária de Estado Hillary Clinton, lançou uma plataforma contra a legislação do Voter ID. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Como o voto nos Estados Unidos é facultativo, essas medidas desestimulam a ida às urnas. Os mais afetados pelo aumento da burocracia, dos gastos e da limitação de tempo são as minorias e as camadas mais pobres. As leis de restrição são, em geral, movidas por representantes do Partido Republicano – os nove estados agora com políticas de voto autônomas em relação a federação, por exemplo, apoiam o partido. Para o Ph.D em Ciências Políticas pela Universidade de Minnesota, Eric Ostermeier, o viés político dessas medidas ultrapassa a ideia de que seriam motivadas por preconceito racial.

 

— Não podemos esquecer que, quanto menos eleitores forem votar, maior o prejuízo para os candidatos do Partido Democrata. Se existe uma motivação nociva de limitar o acesso às urnas em vários estados, é provavelmente uma questão mais política que racial. Se os afro-americanos votassem em massa no Partido Republicano, duvido que os legislativos e governos republicanos moveriam qualquer tipo de legislação restritiva como essas.

 

Hillary, em sua conta oficial no Twitter, pergunta aos texanos se podem usar a permissão para porte de arma ou a carteira de estudante para votar

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Aprovação da Lei Caó é motivo de discordância entre especialistas

No Brasil e nos Estados Unidos, cenas filmadas denunciam abusos

Após 26 anos da aprovação da Lei Caó (lei nº 7.716), os casos de discriminação contra negros persistem no Brasil. Especialistas apontam brechas na lei que criminaliza ofensas à raça dos cidadãos. No parlamento, a eficácia da regra não é unanimidade entre os políticos. Para o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), a Lei Caó deve ser mudada para assegurar a punição a quem fizer discursos racistas. Hoje, como a lei prevê penas inafiançáveis, os juízes preferem enquadrar a prática de racismo como injúria. Em oposição, o autor da lei antirracismo, Carlos Alberto de Oliveira, conhecido como Caó, acredita que a lei não deve ser reformulada, mas aplicada plenamente para que as condenações sirvam de exemplo.  

 

Criada em 5 de janeiro de 1989, a Lei 7.716 tornou o crime de racismo inafiançável e imprescritível, ou seja, que não perde a validade enquanto o réu permanecer vivo. Com a sanção, as pessoas que cometerem atos de discriminação ou preconceito de raça, cor e etnia podem ser punidas com pena de reclusão, que varia de um a cinco anos. A lei ficou conhecida como Caó em homenagem ao seu autor, o ex-deputado Carlos Alberto de Oliveira. Mas, segundo o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), a norma é ineficaz e raramente aplicada pelo sistema judiciário que atribui preconceitos contra a raça como injúria e não racismo. A injúria racial é tipificada como ofensa à honra de um indivíduo utilizando elementos referentes à raça, etnia, cor, religião ou origem. Em 2014, o delito de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal, teve a pena aumentada de um a três anos para dois a cinco anos de prisão.  

 

Segundo Caó,  a diferença entre injúria racial e racismo é praticamente nula.

 

— Em injúria há realmente elementos racistas. Eu já ouvi pessoas dizendo que, para caracterizar o racismo, é preciso que haja uma agressão à etnia, enquanto injúria é quando uma pessoa é atingida diretamente. Nos dois casos, há racismo. Dentro da injúria, há racismo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caó defende que, ao invés de reformular a lei antirracismo, os políticos e a Justiça brasileira devem se preocupar com a aplicação da norma. O ex-deputado afirma que, atualmente, as pessoas se previnem contra o racismo e inventam diferentes maneiras de não adotar atitudes racistas. “O que ocorre é que hoje ninguém pode se dizer racista”, garante.

 

Para o deputado federal Jean Wyllys, a Lei Caó é uma resposta limitada à questão racial no Brasil e precisa, além de punir criminalmente, ser colocada em pauta. O parlamentar acredita que a prescrição do racismo como crime inafiançável, conforme prevista na Lei Caó, não diminuiu as práticas racistas no país.

 

— Até hoje ninguém foi preso pelo crime de racismo. Dar uma resposta penal para problemas estruturais e sistêmicos é um erro ou é uma resposta limitada e populista. A pessoa pode ser punida com uma medida sócio educativa que a leve a desconstruir o preconceito como um agravante. Pra mim é nesses termos que o racismo devia ser criminalizado. O crime de ódio, o crime contra a vida e a lesão corporal motivado por racismo: prisão. Agora, a injúria a expressão da injúria, do discurso racista aí sim devia ser punido com medida sócio-educativa.

 

Além de uma proposta de reformulação da lei Caó, o deputado federal Jean Wyllys afirma que a sociedade precisa reconhecer o Brasil como um país historicamente racista. De acordo com o político, camadas da elite do país insistem em ressaltar o que ele chama de “mito da democracia racial”, na qual o Brasil é composto por raças que se misturaram e que, portanto, não há racismo.

 

— Somos um país de práticas racistas. O Brasil não fez uma politica de inserção, os males da escravidão não foram reparados, pelo contrário, sempre foram postos para debaixo do tapete. A gente excluía e exclui os negros, as pessoas ‘de pele’.

 

De acordo com o doutor em História Social (UFRJ) Carlos Alberto Medeiros, as formas de discriminação no Brasil são veladas, diferente do que se observa na segregação espacial em bairros dos Estados Unidos. Segundo o especialista, porém, a lei brasileira contra o racismo não minimizou as práticas preconceituosas contra negros no país. O motivo, para Medeiros, é a indisposição do sistema judiciário em enquadrar denúncias contra a cor da pele como racismo.

 

— Não vejo com bons olhos a lei. Se o sujeito me matar, o crime prescreve como inafiançável. Os juízes não gostam disso, isso atrapalha ao invés de ajudar. A lei depois foi reformulada, virou a Lei Caó, que substituiu a Lei Afonso Arinos - ela é apenas uma atualização, mantém os mesmos defeitos da outra, e um deles é a extrema dificuldade de a pessoa que sofreu o racismo conseguiu provar que realmente aconteceu. Em minha opinião, a Lei Caó deveria ser totalmente reformulada, ela não funciona.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

De 1989 para cá, os casos de racismo têm aumentado no Brasil. Em 2011, a Secretaria de Igualdade Racial da Presidência da República registrou 219 denúncias, enquanto, em 2013, foram 425 casos. Segundo a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB-SP), mesmo a questão racial tendo pouco espaço na mídia, os movimentos sociais e alguns políticas do Estado têm ajudado a mudar o paradigma de insultos raciais. Entretanto, ela acredita que ainda há resistência em admitir que o  governo deve adotar medidas para tentar combater o racismo. Leci sustenta que as práticas racistas vêm desde o período da escravidão.

 

— Sempre houve racismo contra a população negra no Brasil. Essa é uma das heranças da escravidão. Não acho que ele tenha diminuído ou aumentado.

 

Atualmente, para Medeiros, não há novidades na prática de racismo. Segundo ele, o aumento do número de registros se deve ao encorajamento da população negra que passou a denunciar casos de discriminação por conta da cor da pele.

 

— O que mudou, e deixa essa impressão de que aumentou o número de casos, é a reação das pessoas. Aquilo que as pessoas aceitavam antes, hoje não aceitam mais.

 

Maioria da população brasileira, negros são minoria na política

 

Nas eleições de 2014, do total das 513 cadeiras da Câmara dos Deputados, 71,9% das vagas foram ocupadas por homens brancos, enquanto 14,4% o foram por homens pardos e 3,7% por homens que se autodeclararam pretos. A subrepresentação política desses grupos não pode ser totalmente explicada pela carência de candidatos da raça negra. Para o cientista político da Universidade Federal de Ouro Preto Antônio Marcelo Jackson, a baixa presença do negro na política envolve baixa autoestima.

 

— O nosso racismo, sim, sem duvida nenhuma, contribui para a baixa quantidade de negros no sistema representativo da política. Na medida em que não há negros chegando aos mais diversos postos do alto escalão, então você tem uma sociedade problemática e discriminatória.

 

O professor da Unirio e sociológo no Iesp/Uerj Luiz Augusto Campos acredita que negros e pardos estão sub-representados no parlamento brasileiro porque, segundo ele, a alta  taxa de renovação dos políticos no poder não implica, necessariamente, em uma renovação ideológica e racial. O sociólogo atribui a baixa presença no parlamento à falta de acesso da população negra aos partidos políticos tradicionais e a distribuição desigual de financiamentos das campanhas eleitorais.

 

— As máquinas políticas mais fortes eleitoralmente tendem a ter menos negros, como é o caso do PMDB, do PSDB, por exemplo. Se os negros não têm acesso a grandes máquinas partidárias, eles não tem representação. A segunda razão é a distribuição desigual de recursos de campanha. O candidato negro tem dificuldade grande de chegar no patamar  de uma elite mais competitiva e, por isso, tem o acesso prejudicado por financiamento de campanha.

 

Para Leci Brandão (PCdoB-SP), a segunda mulher negra eleita para a Assembleia Legislativa de São Paulo em 180 anos, apesar da graves distorções no sistema político, os deputados são representantes do povo e refletem o desejo do eleitor para nas Casas Legislativas. De acordo com a deputada estadual, é preciso mudar as estruturas de poder para que a democracia racial seja alcançada na política.

 

— Existem poucos deputados negros e devemos questionar porque os negros têm uma representação tão pequena e tão desproporcional, visto que somos a maioria da população. Dentro da Assembleia o que conta é a composição de forças que aqui está. Se há poucos parlamentares comprometidos com a questão da igualdade racial e da justiça social não há como termos ações concretas e importantes voltadas para essa população. Sofremos do racismo institucional e que só pode ser combatido se mudarmos as estruturas.

 

A baixa presença de políticos negros no poder

 

A sub-representação dos negros nas Casas Legislativas do Brasil não pode ser atribuída à falta de engajamento político do eleitor negro. Para o autor da lei antirracismo, Carlos Alberto Oliveira, o preconceito racial, ainda predominante no país, atrapalha a formação de uma identidade completa do eleitorado negro para com políticos da raça negra. Já sociólogo Luiz Augusto Campos acredita que é normal o fato do eleitor ser reativo a uma categoria discriminada historicamente. Por outro lado, o especialista aponta as desigualdades na distribuição de candidaturas, que tornam o candidato invisíve. Por isso, segundo ele, não é possível culpar o eleitor pela não-eleição de candidatos negros.

 

O cientista político da Universidade Federal de Ouro Preto (MG) Antônio Marcelo Jackson faz alusão ao filósofo francês Arthur de Gobineau para elaborar uma tese sobre a sub-representação do negro na política brasileira. Gobineau sustentava que a raça branca era marcada pelo uso da razão, e a negra pela força física. A mistura de raças, segundo o filósofo, significava um atraso para a sociedade brasileira. Com essa análise, o cientista político Antônio Jackson acredita que a mentalidade disseminada na época colonial afeta as bases de poder que, atualmente, estão consolidadas sem a presença efetiva de negros.

 

— Se você vive num grupo social que é declarado o tempo todo como inferior, com o passar do tempo, acredita que a raça negra é inferior, segundo Gobineau. Por isso, o próprio negro não vota no negro. O problema é ideológico. É preciso um conjunto de ações afirmativas que partam do poder político e que deixem claro que aquilo que acontece é um absurdo, e que é possível mudar a ideologia presente da sociedade.

 

Desde as últimas eleições, em 2014, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a computar a variável cor/raça dos candidatos registrados para o pleito, somando-se aos demais atributos tradicionalmente coletados pelo TSE como profissão, grau de instrução, patrimônio, gênero. As dificuldades de ascensão social dos não brancos no Brasil, estatisticamente documentadas, contradizem o mito que realça o caráter harmonioso da convivência racial no país.

 

Embora seja praticamente consensual o diagnóstico de que a política brasileira é feita majoritariamente por brancos, compreender os mecanismos políticos e sociais que levam à sub-representação dos não brancos não é tarefa simples. O sociológo Luiz Augusto Campos traça uma relação entre política e poder para explicar a baixa presença de negros em cargos políticos.

 

— Os partidos tradicionais são partidos que têm elites igualmente tradicionais. As elites tendem a ser mais fechadas a uma renovação externa dentro do partido. Muitas famílias dominam a política em determinados partidos. Estas famílias garantem a renovação de pessoas, mas a renovação tende a ser intra-familiar, não é uma renovação externa, o que impossibilita a entrada do negro nesses partidos. Isso tende a reproduzir uma desigualdade racial em sua composição. Determinados partidos tendem a dar mais espaços a membros de determinadas políticas econômicas. Partidos ditos de esquerda tendem a ter mais negros candidatos.

 

Se o racismo ainda é prática recorrente na sociedade brasileira, as instâncias de poder do país parecem não estar preocupadas com o debate do tema. De acordo com o professor Antônio Marcelo Jackson, a questão racial tem pouco espaço na pauta do legislativo e não é vista como um problema pela maioria dos parlamentares. Para ele, o parlamento só funciona na base da pressão.

 

— Se existe alguma demanda de movimentos sociais, o legislativo reage e produz coisas até boas. Se não, não acontece e cada deputado tem seu interesse particular e não se importa com o interesse público. Algumas demandas sociais já foram apresentadas pelo parlamento brasileiro, mas só aconteceu diante de demandas sociais que apareceram. Não é uma coisa espontânea, por isso não dá para mensurar ou medir isso. Se for para mensurar, digo que o parlamento não faz nada para combater as questões raciais, ele só reage às demandas.

 

Para Wyllys, os aparelhos ideológicos do Estado convergem para a gestão de um branco sobre a sociedade. Para ele, assim como ocorre com os gays, os negros não votam em candidatos da mesma raça por falta de identificação.

 

— O sistema serve para que nós, as vítimas desse aparelho ideológico, introjetemos os valores do próprio sistema e viremos cúmplices da nossa própria desgraça. Então os gays são homofóbicos, as mulheres são machistas e os negros introjetam racismo, ou seja, uma desindentificação consigo mesmo. Talvez essa seja a principal estratégia para que eles permaneçam vitoriosos.

 

Assassinatos de jovens negros são quase quatro vezes maior

 

Apesar da mudança no papel, os negros ainda sofrem racismo e frequentemente se vêem em situação de discriminação. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios, divulgada em setembro de do ano passado, 104,2 milhões de brasileiros são pretos e pardos, o que corresponde a mais da metade da população do país (52,9%). A possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior do que a de um branco, de acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

 

Wyllys também afirma que a violência contra a população negra tem raízes mais profundas. Ele afirma que o próprio sistema judiciário perpertua o racismo e questiona a efetividade da Lei..   

 

— Qual é a cor da população carcerária? A que classe social pertence a população carcerária, que a gente trancafiou? Qual é o perfil socioeconômico dos 500 mil presos, da população carcerária? Essas são perguntas para o movimento negro.

 

O advogado e presidente do Coletivo Justiça Negra Luiz Gama, Bruno Cândido, admite que somente a "nova geração" do movimento está discutindo medidas de combate a práticas racistas. Segundo o advogado, a juventude atual, quem vem, em maioria, do meio acadêmico, não crê que a prisão seja a medida mais adequada para combater o racismo. Para ele, os jovens discutem o tema pois são os mais afetados pela violência.

 

— Não há dúvida de que quem coloca isso em pauta é a juventude negra. Até porque é a juventude que é alvo do encarceramento, alvo da violência policial, é alvo até dessa discussão do congresso sobre redução da maioridade penal, comenta.

 

O advogado afirma que o sistema judiciário é seletivo fruto de um problema estrutural que vem desde a época da escravidão.

 

— O sistema criminal é defeituoso desde o seu nascimento. Ele foi criado para selecionar, para recrutar negros para o sistema carcerário. Além disso, estamos falando de uma lógica do racismo estrutural, o que quer dizer que as questões raciais caem em invisibilidade ou na banalização. Então, o membro do Ministério Público ou o juiz banalizam a pena, não por considerar o racismo um crime em  potencial, mas justamente por considerar que no Brasil não existe racismo. É preciso um esforço do movimento negro  para fazer entender essa pauta pela Justiça. E é isso que estamos tentando fazer.

 

Bruno acredita que a sociedade considera a prisão como a solução de qualquer questão, inclusive o racismo. Ele garante que esse caminho não é a resposta ideal para o problema.

 

—Não, a prisão não resolve problema nenhum, principalmente no Brasil, onde ela não ressocializa, não devolve a pessoa da maneira que deveria para a sociedade, como uma pessoa de ‘bem’.

 

Porém, para o presidente do Coletivo Justiça Negra Luiz Gama, uma solução alternativa para reduzir os casos de agressões verbais contra negros seria o pagamento de multas.

 

— Determinados casos de racismo, dependendo do grau de violência que aconteceu, deveriam sim ter uma punição pecuniar, ou seja, o indivíduo seria obrigado a pagar uma indenização. Eu acredito é que o bolso é que vai disciplinar, assim como a Lei Seca no Rio de Janeiro, por exemplo. A sociedade do Rio de Janeiro mudou com a Lei Seca, propõe.

 

 

 

 

 

No dia 20 de fevereiro desse ano, Alan de Souza, de 15 anos, e Chauan Jambre, de 20, andavam de bicicleta na favela da Palmeirinha, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, quando foram atingidos por tiros de Policiais Militares. Alan filmava o passeio no momento em que eles foram alvejados, e acabou captando os últimos minutos de sua vida. Ele foi atingido, não resistiu aos ferimentos e morreu. O amigo Chauan sofreu um tiro de raspão no peito. Levado ao hospital, foi atendido e liberado.

 

Meses depois do ocorrido, Chauan ainda possui a cicatriz da bala que o atingiu, que continua alojada em seu peito. Ao se lembrar do amigo assassinado e do que mudou em sua rotina, ele não esconde a emoção.  Chauan, que foi chamado para dar seu depoimento apenas duas vezes, afirmou que não recebeu nenhum pedido de desculpas dos policiais, e que ainda não houve sequer a reconstituição do caso, procedimento padrão da Polícia Civil em situações de supostos homicídios.

 

O caso foi registrado na Divisão de Homicídios da Capital, e os policiais envolvidos na morte de Alan foram chamados para depor na última semana. Eles também foram afastados da PM e respondem a um inquérito na corporação. Chauan, que foi chamado para depor duas vezes, afirmou que ainda não houve uma reconstituição do caso, procedimento padrão da Polícia Civil em situações de supostos homicídios.

 

Passados quase dois meses do crime na Palmeirinha, em 12 de abril, a cidade de Baltimore, centro financeiro de Maryland, nos Estados Unidos, também foi palco de uma polêmica tragédia. Um vídeo que se espalhou pela internet flagra o momento da prisão de Freddie Gray, um americano negro de 25 anos. As imagens mostram policiais levando o homem algemado para dentro de uma van enquanto ele grita por socorro.

 

A questão da prisão de Gray não é o que levou ele a ser preso, mas o que foi feito com o rapaz enquanto ele era levado à delegacia local. Há uma forte suspeita que Freddie Gray foi agredido na viatura policial. No vídeo, gravado às 8h54, é visível que Gray se debate enquanto grita. Segundo testemunhas, ele já apresentava dificuldades de respirar naquele momento. Quando o relógio marcava 9h24, uma ambulância foi chamada pela própria polícia, alegando que o rapaz estaria precisando de “atenção médica”, como afirmou a corporação. O veículo levou Gray, já em coma, para um hospital especializado em traumatismos. No centro médico, foi diagnosticada uma lesão que debilitou 80% de sua medula espinhal. O laudo também aponta que o problema provavelmente ocorreu enquanto ele estava dentro da van, o que aumenta as suspeitas da agressão. Uma semana depois, no dia 19 de abril, Gray foi declarado morto. De acordo com o advogado de Gray, os agentes correram atrás do rapaz por suspeitarem da faca que portava.

 

A polícia de Baltimore ainda está investigando o caso, mas não há uma resposta até agora. No dia 22 de abril, três dias após a morte de Gray, o Departamento de Justiça dos EUA anunciou que também iria investigar o caso. A razão para o envolvimento do departamento é a possibilidade dos direitos civis de Gray terem sido violados pelos policiais. O motivo da demora de uma resposta oficial é que alguns dos exames de perícia podem demorar semanas para ficar prontos. Os seis policiais envolvidos no incidente foram suspensos da corporação, enquanto a investigação não termina.

 

Apesar de geograficamente distantes, os casos são muito parecidos. Gray foi detido por supostamente estar levando consigo uma faca, o que não foi comprovado. Alan e Chauan foram alvejados por estarem com um celular que foi confundido por uma arma pelos PMs. Nem o americano e nem os brasileiros foram abordados: a polícia entrou em ação sem aviso prévio. Segundo Chauan, que até hoje está com uma bala alojada no peito, os tiros foram disparados repentinamente.

 

— A gente estava na porta de casa, brincando e filmando as brincadeiras. Ele brincou que ia postar os vídeos nas redes sociais e eu fui correr atrás dele. Não teve nenhum aviso, não havia nem sinal da viatura e não houve nenhuma ordem deles (dos policiais) para a gente parar. Eles já chegaram efetuando os disparos, e aí aconteceu aquela fatalidade.

 

Os casos são exemplos de um problema recorrente nos dois países. Estatísticas de Brasil e Estados Unidos comprovam que a violência contra negros não está somente nos livros de história. Dados recentes divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que nos últimos quatro anos o número de homicídios no Brasil aumentou em 9.128 casos, chegando a 53.646. Destes, 68% envolvem pessoas negras – ou seja, 36.479 são homicídios contra negros. Entre os mais de 36 mil casos, 53,3% inclui a faixa etária de 15 a 29 anos, e incríveis 93,8% foram contra o sexo masculino. Em São Paulo, centro econômico do país, afrodescendentes são duas vezes mais executados pela polícia.  O único estado do país em que a proporção é favorável aos negros é no Paraná.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nos Estados Unidos, os dados também são agravantes. Uma pesquisa do grupo Black Riders, que estuda a violência contra negros pelo mundo, um afroamericano é morto a cada 28 horas no país. Destes, 85% estão desarmados na hora do homicídio. Em Nova York, cidade americana mais populosa, 80% das pessoas abordadas pela polícia são negras. Na última pesquisa carcerária divulgada pelo Departamento de Justiça dos EUA, as estatísticas mostravam que os homens afroamericanos corriam seis vezes mais riscos de serem presos do que homens brancos.

 

A semelhança entre Brasil e Estados Unidos não é coincidência. Para o doutor em história social Carlos Alberto Medeiros, o panorama de um deles influencia diretamente o outro. O especialista fez um balanço histórico entre ambos e refletiu sobre as mudanças de comportamento que um causava no outro.

 

— Eu costumo dizer que Brasil e Estados Unidos sempre se compararam. É um jogo de espelhos, um olhando pro outro em cima da questão racial. Essa comparação é quase inevitável se pensarmos que na origem são duas sociedades constituídas por indígenas que foram dizimados e africanos que foram trazidos como auxiliares involuntários na colonização. De um ponto de vista progressista, o Brasil era considerado melhor, já que não existiam aqui formas tão extremas de discriminação. Tínhamos segregação por costume, não por lei. Havia uma polaridade: Brasil positivo e Estados Unidos negativo, e ela durou até os anos 60, quando começam a acontecer mudanças na lei americana, e aí, para pelo menos um grupo da sociedade brasileira, os Estados Unidos passam a ser um modelo de luta.

 

A questão racial pode ser vista também como um problema que vai de baixo para cima. Caó acredita que o cenário político é o princípio causador do racismo e reflexo do preconceito.

 

— A questão da discriminação tem seus traços culturais, mas é, sobretudo, política. O censo mostra que o negro é maioria, mas não está no poder. Isso é fruto da discriminação. Hoje em dia, ela é menor, mais combativa, mas ainda existe. Não há uma identidade do eleitor negro com os elegíveis. Isso é resultado do preconceito. O preconceito bate forte.

 

Caó acredita, porém, que, com o tempo, esse panorama vai melhorando, mas retifica que ainda há um longo caminho a ser percorrido.

 

— Hoje você observa o Censo e vê que um negro já sabe que é negro, já é consciente e não tolera discriminação. Mas ainda temos muitos avanços a dar. O Brasil tem quantos anos de racismo? São quase quatro séculos. Então, a mudança na cabeça das pessoas não é  repentina . As coisas avançam gradativamente, não é um país de avanço instantâneo. Assim como a abolição da escravatura, esse processo (de acabar com o racismo) é gradual e ainda está incompleto.

Comissão discute reparação histórica

A permanência da desigualdade racial, mesmo após o fim da escravidão no Brasil, levou ao surgimento das ações afirmativas para tentar instaurar uma democracia racial. Com o objetivo de resgatar a história da população negra no Brasil para reafirmar a necessidade das políticas afirmativas e buscar um caminho jurídico de reparação, foi criada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a Comissão Nacional da Verdade sobre a Escravidão em novembro de 2014 com posse no dia 6 de fevereiro de 2015. O prazo para conclusão dos trabalhos é de dois anos, mas a estimativa é que um relatório parcial seja divulgado no final de 2015.

 

A Comissão é composta por 57 membros, entre eles 10 advogados, 35 consultores e 15 convidados do judiciário e Ministério Público.  O presidente da Comissão e advogado Humberto Adami, um dos criadores,  afirma seguir os moldes da Comissão da Verdade na Ditadura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A ideia é resgatar a memória do passado da escravidão negra no Brasil como forma de vincular ao racismo existente nos dias de hoje e também pensar em formas de reparação.

 

Os membros não visam imediatamente reparações financeiras, mas Adami acrescenta que isso também pode acontecer. Ela vem atuando em alguns estados do Brasil, junto com as OABs estaduais e os militantes de cada região, como o Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraíba e Belém do Pará.

 

Carlos Nobre, consultor da Comissão, ressaltou que está sendo criado um caminho jurídico, que será implantado pela OAB, para que haja a reparação dos crimes da escravidão.

 

A maior reparação vai ser aumentar as cotas nas universidades e nas ações públicas. Monumentos, locais reverenciando grandes pessoas negras, nomes de escolas com heróis negros, e, principalmente, ampliação da divulgação do combate ao racismo por parte do Estado brasileiro, serão outras medidas importantes.

 

Desde o processo de formação da sociedade brasileira, a população negra enfrenta barreiras sociais e dificuldades de ascensão profissional que influenciam de forma negativa suas condições de vida. Essa herança do período escravocrata se reflete na desigualdade de oportunidades entre negros, que continuam em posições inferiores, e brancos.  Segundo dados do IBGE, 53% da população brasileira (106,7 milhões) se autodeclara negra. Dentro do serviço público, de acordo com dados do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape), apenas 32,3% dos servidores pesquisados são pretos ou pardos.

 

Em algumas carreiras, como diplomacia (5,9%) ou auditoria fiscal (12,3%), a presença de negros é ainda menor. As distorções são evidentes em cargos que exigem curso superior, e também no preenchimento de cargos de confiança. A quantidade de brancos ocupando cargos com nível superior é três vezes maior que a de pretos e pardos. Nos cargos comissionados, apenas 27% são pretos ou pardos.

 

Para corrigir estas desigualdades e para que o serviço público reflita de maneira fiel a distribuição da população brasileira foi criada em 9 de junho de 2014 a Lei nº 12.990, que garante reserva de 20% das vagas em concursos públicos. Na data em que a lei completa um ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que administra o Judiciário, aprovou uma resolução que obriga os tribunais do país a reservar no mínimo 20% das vagas nos concursos para servidores e juízes para negros.

 

A regra valerá para seleção de servidores para o próprio CNJ, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), os cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs) existentes no país, além dos tribunais do Trabalho, Eleitorais, Militares e também Estaduais e do Distrito Federal.No caso da magistratura, a cota de 20% valerá para concursos de juízes federais, juízes do trabalho, juízes militares e juízes de primeira instância da Justiça Estadual.

 

O Supremo Tribunal Federal ficou fora da resolução porque não é submetido ao CNJ, mas já conta com cota de 20% em seus concursos para servidores. Os tribunais superiores, como o próprio STF, o STJ, o TST e o TSE, não terão cotas para ministros porque suas vagas são preenchidas por indicação da Presidência da República, não por concurso.

 

As cotas no Judiciário deverão ser aplicadas até 2024, quando termina a vigência da Lei 12.990 e institui as cotas no serviço público federal. Até então, ela não se aplicava ao Judiciário porque dependia da resolução aprovada pelo CNJ. A resolução diz que em 2020, quando o CNJ fizer um novo censo do Judiciário, o percentual de 20% poderá ser revisto.

 

Para a blogueira Gabriela Moura, 27 anos, é importante formar profissionais negros e, através da política de cotas, torná-los presentes em todas as áreas.

 

São esses cidadãos negros que poderão levar ao mercado as pautas negras e, assim, agir de forma efetiva para uma sociedade mais igualitária.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gabriela foi bolsista na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e conta que ficou muito tempo desempregada. Quando conseguiu um trabalho, teve que lidar com o preconceito.

 

Eu fazia entrevistas, mas simplesmente não tinha feedback. Já me chamaram de burra e chegaram a fazer piadas com meu cabelo ou meu tom de pele na frente de uma equipe inteira.

 

A implantação da política de cotas raciais começou no setor da educação. A Universidade de Brasília (UNB) foi pioneira ao aderir às cotas em junho de 2004. No primeiro vestibular, 20% do total de vagas de cada curso foram destinados a estudantes autodeclarados negros, pardos ou indígenas. Na época, a universidade sofreu críticas de vários setores sociais contrários ao projeto.

 

Onze anos após esse progresso na educação superior, ainda é possível notar uma posição negativa em relação ao sistema de cotas raciais e aos programas para estudantes de baixa renda. A estudante de medicina veterinária da Universidade Federal Fluminense (UFF) Desenir Adriano Pedro, de 21 anos, contou que não foi vítima de preconceito direto na universidade, mas percebeu que os alunos desaprovam a medida.

 

A maioria dos alunos discorda das cotas no ensino superior e acha injusto o benefício dado aos negros e aos estudantes mais carentes. Mas esse direito é dado para sanar parte de um problema social que existe no país desde sempre: negros e pobres não têm acesso a muitas oportunidades. No passado, era muito mais difícil ingressar em curso superior, e isso se refletiu na minha família. Negra e pobre, eu sou a primeira a conseguir um diploma universitário.

 

Gabriela ainda estudava na UEL quando sofreu discriminação por ser negra e bolsista. Ela lembra que era questionada por “roubar” a vaga de outra pessoa.

 

Eu tinha colegas que simplesmente não aceitavam cotistas e, às vezes, faziam piadinhas sobre escravos. Era humilhante. O racismo injeta comportamentos que são absorvidos e naturalizados, e a pessoa diminui a outra achando que não está fazendo nada demais. Isso aconteceu comigo porque as pessoas ainda não estavam acostumadas a cursarem uma graduação com pobres e negros por perto.

 

Segundo Frei David, fundador da ONG Educafro voltada para a educação de afrodescendentes e carentes, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), pioneira à introdução de cotas no Rio de Janeiro, inicialmente foi contra a ação afirmativa.

 

Quando conversamos com a reitoria da Uerj sobre cotas, a resposta foi não. Eles fizeram uma pesquisa com funcionários, estudantes e professores para ratificar a posição da universidade e a maioria era contra esse tipo de ação afirmativa.

 

Com o apoio de outras organizações para jovens negros e carentes, a Educafro continuou o diálogo com deputados, governador e ministério público.

 

A consequência da luta foi o estabelecimento, por lei, não por vontade da UERJ, da política de cotas raciais. A partir dessa vitória, decidimos lutar por uma lei federal que decretasse as cotas nas universidades. Atualmente, 95% das universidades públicas no Brasil já têm esse tipo de programa de inclusão voltado para os negros.

 

Desde agosto de 2012, a Lei de Cotas, nº 12.711/2012 garante que estudantes autodeclarados negros, pardos e indígenas tenham reserva de vagas nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia. O número de vagas para os alunos negros é definido por cada instituição.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A lei também reserva 50% das vagas para alunos de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio por pessoa. Os outros 50% das vagas são para a ampla concorrência, ou seja, para alunos que não se encaixam nestes perfis. Ainda de acordo com a lei, todas as instituições de ensino superior do país têm até 2016 para cumprirem a determinação. 

 

De acordo com dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em 2011, antes da unificação do vestibular por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o número total de negros e pardos matriculados em universidades públicas e privadas era de cerca de 800 mil. No mesmo período, havia aproximadamente um milhão e quinhentos mil estudantes brancos nas universidades. Em 2013, a última estatística do Inep mostrou que, após a implantação das cotas raciais no Enem, o número de pretos e pardos matriculados aumentou em 35%, um total de 1.131.021 alunos.

 

Carlos Alberto Medeiros acredita que um dos maiores desafios no Brasil é o equilíbrio da educação básica privada e pública.

 

Essas políticas afirmativas têm que vir acompanhadas de outras políticas universalistas para que se atinja toda população. No Brasil, a melhoria da qualidade do ensino público seria a solução. A ação afirmativa não substitui o problema.

 

As políticas de cotas do Brasil foram inspiradas nas leis anti-segregacionistas dos Estados Unidos. No país norte-americano, a expressão “ação afirmativa” foi utilizada pela primeira vez pelo presidente John F. Kennedy em 1961. Com o objetivo de dar igual oportunidade para as minorias negras no mercado de trabalho, a Comissão para a Igualdade de Oportunidades de Emprego Americana definiu que não podia discriminar qualquer candidato a emprego ou empregado com base em raça, credo, cor ou origem nacional. Outra ação da década de 60 foi a lei “Fair EmploymentAct” que proibia a discriminação de negros na seleção de pessoas para trabalhar em órgãos governamentais relativos à defesa nacional.

 

Segundo Carlos Alberto Medeiros, essas leis foram perdendo a eficácia.

 

Na verdade, a primeira derrota das ações afirmativas aconteceu por causa dos cortes da Suprema Corte Americana. Essa ação limitou o uso de cotas numéricas, ou seja, da reserva de um número específico de vagas para os negros.

 

Atualmente, a situação dos Estados Unidos não está muito diferente. O banimento das cotas raciais nas universidades estaduais do Michigan, decidido em abril do ano passado, mostra a perda da força das ações afirmativas americanas desde a década de 60. A decisão veta a reserva de vagas numéricas para a entrada de alunos das minorias americanas, por meio de qualquer tratamento preferencial às pessoas com base na raça, sexo, cor, etnia ou origem. Michigan se juntou a outros estados americanos como Califórnia, Flórida, Arizona e Nebraska que adotaram esse mesmo modelo. 

 

Com a proibição de cotas raciais para os negros, as universidades e as empresas passaram a captar os talentos da raça negra através da chamada “Promoção da Diversidade”. De acordo com Medeiros, a estratégia das empresas é ir atrás dos talentos dessa etnia.

 

Eles acreditam que a presença de pessoas negras amplia a cultura organizacional. As empresas identificam as pessoas talentosas desse grupo. Elas não querem ficar esperando que essas pessoas venham até elas. Além disso, eles querem garantir que haja a oportunidade de promoção para os negros e que isso possa alcançar os cargos de liderança.

 

Já as faculdades americanas criam um banco de talentos com pessoas negras. Para Medeiros, outra forma de promover e buscar este prodígio para as universidades é levar a instituição de ensino para os bairros americanos de maioria negra.

 

— As faculdades americanas fazem eventos nesses lugares para estimular as pessoas e dizer que a faculdade também é feita para eles. Para assegurar o acesso do jovem negro, algumas universidades também distribuem bolsas de estudos - afirmou Medeiros.

 

 

O presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra Humberto Adami durante cerimônia de posse da nova comissão (Elza Fiúza/Agência Brasil)

O presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra Humberto Adami durante cerimônia de posse da nova comissão (Elza Fiúza/Agência Brasil)

 Exemplo de distribuição de vagas pela lei de cotas (Foto: Divulgação/MEC)

Crise de representatividade: o lugar dos negros na mídia televisiva

Uma das figuras mais importantes da televisão norte-americana e do showbiz mundial, a showrunner negra Shonda Rhimes é a criadora de “Scandal”, “How to Get Away With Murder” e “Greys Anatomy”. Sucessos de crítica e público, as três séries se destacam por um elemento em comum: trazer um elenco significativo de atores negros, desempenhando papeis de destaque para a trama. No Brasil, a ausência de autores negros como Shonda Rhimes é um dos motivos para a crise de representatividade artística dos negros, principalmente no maior produto televisivo nacional, as novelas.

 

Para o jornalista João Fernando, especialista em séries da Revista da TV do jornal O Globo, um dos fatores responsáveis pela presença de personagens negros em papéis de destaque se dá pelo fato de os personagens serem um reflexo da autora. Outro fator que explica a maior inserção dos negros na televisão é de que, nos Estados Unidos, há uma preocupação maior em contemplar diferentes minorias sociais na mídia. Entre os norte-americanos, especialmente na mídia, a temática da segregação dos negros é um tema constante que vai além da culpa pelo passado escravocrata e a segregação.

 

— Seja em filmes de comédias ou em talk shows, o tempo todo há situações e piadas que abordam essa temática. Por lá, a piada não tem o peso ofensivo que tem no Brasil. Por aqui, a situação é diferente, pois os negros estão mais misturados na população e o preconceito é mais velado. Ninguém se dirige aos negros como fazem na TV e na ‘vida real’ norte-americana. No Brasil, há um comedimento, um certo desconforto em abordar as diferenças. Fica a impressão de que autores e diretores estão tentando compensar uma dívida histórica.

 

A TV Globo completou 50 anos em 2015. Porém, a primeira novela com uma protagonista negra só foi ao ar em 2004, com Tais Araújo no papel principal de “Da Cor do Pecado”. Já o primeiro casal negro a protagonizar uma novela foi em 2012, com Lázaro Ramos e Camila Pitanga em “Lado a Lado”. Considerado o maior especialista de telenovelas do país, Mauro Alencar afirma que até 1970, os negros eram retratados majoritariamente em personagens servis nas novelas de “capa e espada”, ambientadas recorrentemente na Europa monárquica dos séculos XVII e XVIII.

 

Esses papéis de serviçal ou escravo contribuíam para que esses personagens tivessem uma carga psicológica extremamente reduzida. No início da década de 70, houve uma migração no papel social que a novela desempenha, de modo o folhetim deveria retratar a realidade do brasileiro. A partir desta mudança, Mauro acredita que as novelas foram culturalmente responsáveis por quebrar o paradigma vigente até então. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

— Do ponto de vista psicossocial, a telenovela reflete os avanços da sociedade; e, claro, uma vez que o negro passou a conquistar relevância econômica durante as últimas décadas é natural que sua presença ganhe protagonização na história de telenovela. A novela ‘O Grito’, exibida em 1975, tinha Ruth de Souza interpretando Albertina, uma personagem economicamente independente. No mesmo ano, Janete Clair escreve a personagem Percival, um renomado psiquiatra, vivido por Milton Gonçalves em ‘Pecado Capital’. Em 1995, ‘A Próxima Vítima” trouxe uma família negra de classe média alta liderada por Antonio Pitanga e Zezé Motta.

 

A intenção de retratar a inserção dos negros na sociedade nas novelas já ganha a adesão de alguns autores consagrados. Escrita por Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, “Babilônia” traz a personagem Paula, interpretada pela atriz negra Sheron Menezes, como uma advogada bem sucedida que conseguiu entrar na universidade graças ao sistema de cotas. “Insensato Coração” (2011) é outra novela escrita pelo trio que trouxe Lázaro Ramos no papel de André, personagem rico e conquistador, situações pouco vistas na teledramaturgia brasileira. Porém, apesar dos atores negros estarem cada vez mais inseridos na televisão, ainda são poucos os papéis que fogem do estereótipo.

 

Enquanto as séries de Shonda Rhimes se destacam por trazer personagens negros em posições sociais de destaque, séries nacionais como “Filhos do Carnaval” e “Cidade dos Homens” contribuíram para limitar os personagens negros a espaços estereotipados. A primeira trama é ambientada no universo do Carnaval e do jogo do bicho e a segunda, nas favelas cariocas.

 

Premiado ator de cinema, Thogun Teixeira atuou nas duas séries e acredita que as emissoras passaram a ambientar suas produções em espaços marginalizados para tentar aplacar o distanciamento em relação ao público, composto significativamente por negros. Contudo, a crescente representatividade dos negros na televisão não facilitou a entrada de atores negros na televisão. Segundo Thogun Teixeira, a maior dificuldade encontrada pelos atores é se manter trabalhando.

 

— Os publicitários, diretores e dramaturgos não atentam ao mercado consumidor potente que ainda carece ser representado. Isso afeta diretamente na manutenção de oportunidades e bons papéis para atores negros.

 

Em 2014, a TV Globo produziu a série “Sexo e as Negas”. Criticada pelo público antes mesmo da estreia, a série escrita por Miguel Falabella foi denunciada por conteúdo racista e discriminatório à Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial. A história de Falabella mostra quatro amigas, moradoras de uma favela no subúrbio do Rio, e que ao longo da trama tem que administrar a vida profissional enquanto procuraram pelo par perfeito.

 

Segundo Falabella disse na época, a maior inspiração é o seriado americano “Sexy and the City” que também mostra a relação de quatro mulheres com a cidade, a vida profissional e os problemas da vida amorosa. Outra crítica à versão brasileira de Falabella é a associação da mulher negra ao conteúdo altamente sexualizado que não acontece na série americana.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para Fernanda Júlia, diretora da Cia de Teatro NATA de Alagoinhas (BA), “Sexo e as Negas” é um reforço de estereótipos através de uma falsa justificativa de protagonismo. De acordo com ela, um ponto importante a ser levado em consideração, quando se pensa na representatividade de forma geral, é de onde se fala, quem fala e para quem fala. Fernanda destaca a produtora americana Shonda Rhime como um exemplo positivo:

 

— Shonda é negra, escreve a verdade sobre si, percebe a necessidade de referencialidade negra na TV e se dirige a um público negro que quer se ver representado nos espaços midiáticos. No caso de “Sexo e as Negas”, o olhar é colonizador. É um branco que possui em seu imaginário todos os estereótipos construídos sobre o negro. 

 

A diretora ainda aponta o que seria uma impressão ilusória deixada por produções que abordam o negro e o racismo como temática.

 

—  O pior é que ele (autor) acredita que está dando uma "forcinha" para a classe de atores negros ao colocá-los na mídia fazendo piadas racistas de si mesmo e rindo da própria desgraça. O divertimento de sempre do colonizador. 

 

Com mais de 50 anos de carreira – quase todos dedicados à TV Globo –  o ator Milton Gonçalves sente falta de negros com papéis de destaque na televisão brasileira e também acredita que o principal fator para que isso aconteça é a falta de alguém que saiba fugir do mito.

 

— A televisão tem essa capacidade de persuadir, de complementar. A minha vida tem sido melhorar os personagens negros na televisão para que não sejam sempre folclóricos, não sejam sempre palhaços. Eu, voltando a dirigir, não teria nenhuma dúvida: eu colocaria no espetáculo, em um programa, na dramaturgia, ou o quê for, aquilo que o IBGE diz que nós, brasileiros negros, significamos mais de 52% desse país.

 

Além da dificuldade apontada por Fernanda e Milton em ter alguém que escreva sobre os negros e para eles de forma real, o problema está também em como fazer essa mentalidade chegar ao nível da produção de ideias. Para Frei David Santos, diretor da ONG Educafro, o interior das empresas de comunicação, constituído pela maioria branca, não condiz com o retrato da população brasileira que é majoritariamente negra. Segundo ele, para que essa diferença seja eliminada, o governo deveria exigir que as empresas aderissem a uma política de cotas.

 

— No Estatuto da Igualdade Racial tem um capítulo só sobre meios de comunicação e, quando foi criada, a nossa proposta (Educafro) era ter cota para negros em todos os meios de comunicação. Com a promulgação dessa lei, todos os meios de comunicação teriam que ter 20% de negros em todos os escalões. O Estatuto da Igualdade Racial seria nosso grande instrumento de mudança dessa realidade brasileira.

 

Segundo Frei David, a personagem de Sheron Menezes em “Babilônia” pode ser considerada uma mostra de como a política de cotas já está influenciando a mídia, mesmo que indiretamente. Apesar de não ser a protagonista do folhetim das nove, Paula é um recorte da sociedade que vivenciou a implantação das cotas nas universidades há 12 anos.

 

Ao contrário do que acredita Frei David, Milton não aceita as cotas como solução. Para ele, a mudança do cenário atual começa com a aceitação do negro como negro e que, entendendo a história, sinta orgulho da origem africana. Este seria o pontapé inicial, de acordo com ele, para que o negro possa ser representado não apenas na televisão, mas também politicamente.

 

Já Fernanda Júlia vê nas cotas um meio de ampliar a presença negra na televisão. Mesmo assim, ela afirma que aumentar o número de negros dentro das empresas não é o suficiente.

 

— Precisamos enegrecer a formação dos artistas negros, construir nossos canais de mídias e fortalecê-los. Temos que escrever a nossa história dentro das academias e em outros instrumentos de fomento cultural formal e informal. Precisamos nos consumir, comprar e vender nossos produtos entre nós e também para além de nós negros. Não basta a presença negra na TV, precisamos abordar as nossas histórias, do nosso ponto de vista.

 

A identidade cultural americana não se traduziu em representação política

 

O movimento negro no Brasil, segundo Carlos Alberto Medeiros, representa uma minoria, uma vanguarda. É o problema, diz ele, de se considerar a democracia racial uma das características centrais do Brasil. Um mito da miscigenação que se traduz em uma dominação que além do espectro político-econômico.

 

— O domínio não é apenas de classe. Existe também uma dimensão estética. A ideia de que beleza é a beleza branca. Há lideranças do movimento negro, por exemplo, que eu nunca vi namorar mulheres negras.

 

Nos Estados Unidos, Medeiros explica que a segregação explícita forçou os negros a criarem uma identidade por cima das questões de classe. Criou-se então uma unidade nos guetos: diante dos brancos, todos eram negros. Uma construção dos anos 1960 e 1970, promovida também pelo movimento Black Power. As universidades americanas, não por acaso, fundaram centros de estudos sobre a cultura e a diáspora africanas, o que ajudou, segundo o acadêmico, no reconhecimento do afro-americano naquela sociedade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Brasil negro ainda padece de uma identidade na sociedade e, por isso, tampouco se encontra na política nacional. O elo entre reconhecimento e representação, porém, não é automático. Shonda Rimes pode ser um dos americanos negros a veicularem histórias com o olhar dos próprios negros. Mas, nos Estados Unidos, a formação identitária não conduziu os afro-americanos a uma presença proporcional no Congresso americano.

 

Na House of Representatives, equivalente à Câmara dos Deputados brasileira, há hoje 46 congressistas afro-americanos de um total de 435 políticos. De 50 estados, eles ocupam as cadeiras de 24 territórios da federação. O cientista político Eric Ostermeier credita essa taxa representativa de 10% à divisão dos distritos em “distritos de maioria” e “distritos de minoria”. Isso significa que cada espaço delimitado escolherá um representante para si, em eleição majoritária, o que favorece a vitória de afro-americanos com o voto das comunidades. Sem esse desenho de áreas de votação por critérios raciais, a representação negra seria ainda menor, diz Ostermeier.

 

O pesquisador da Universidade de Minnesota ressalva que os negros não têm a mesma oportunidade em eleições para o alto escalão da política nacional. Apenas dois afro-americanos foram eleitos governadores, os democratas Douglas Wilder (Virginia, 1990-94) e Deval Patrick (Massachusetts, 2007-15). No Senado, o republicano Edward Brooke (Massachusetts, 1967-79) e a democrata Carol Mosely Braun (Illinois, 1993-99) figuravam como os únicos nomes da escolha popular desde 1913, até a eleição de Barack Obama por Illinois, em 2004. Atualmente, apenas Cory Booker, de Nova Jersey, e Tim Scott, da Carolina do Sul, colorem as cadeiras de senadores.

 

O triunfo de Barack Obama como primeiro negro a assumir a Presidência dos Estados Unidos foi, na visão de Ostermeier, um momento importante para a política e a história americana, 143 anos depois do fim da escravidão e 44 anos depois da Lei dos Direitos Civis. Desde a eleição de Obama, não houve, porém, segundo o pesquisador, alteração significativa na etnografia da mais alta cúpula política nacional.

 

— É incerto dizer se essa eleição marcará mudanças de fato na representação do negro americano, já que Obama não tem angariado índices de aprovação tão significativos fora do Partido Democrata.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carlos Alberto Medeiros lembra a presença dos negros nas prefeituras de grandes metrópolis americanas, como Nova York, Los Angeles e Chicago. Washington e Atlanta, inclusive, têm tradicionalmente um afro-americano à frente da cidade, segundo o jornalista. A desproporção federal do Congresso pode ser explicada, para ele, pela falta de motivação à participação dos negros nas urnas, já que o voto no país não é obrigatório. Ostermeier avalia que tem sido difícil levar os americanos a votar de uma maneira geral, especialmente as minorias raciais, como observou nas eleições legislativas do ano passado.

 

— Apesar de um engajamento maior nas eleições em que Barack Obama foi eleito e reeleito presidente, os negros tendem a comparecer ainda menos à urna. Não podemos descontar que esse segmento da população é também mais pobre que os demais, e pessoas mais pobres tendem a ir votar menos. O ponto-chave seria, na verdade, a economia, não a raça por si só.

 

E se um grupo específico de indivíduos – uma raça ou uma classe social – não está mobilizado a votar, há menos pressão para os eleitos representarem os interesses desses cidadãos, explica Ostermeier. A maioria dos políticos, ele complementa, visa a interesses próprios e presta particular atenção a quem pode ajudá-los a se reeleger. Para Carlos Alberto Medeiros, o sistema distrital de voto atenua essa consequência, porque o deputado trabalha para a comunidade que o elegeu. A organização bipartidária da bancada negra no Black Caucus também contribui a discussão de pautas e projetos.

 

Mais de 90% dos afro-americanos eleitos para a Câmara concorreram pelo Partido Democrata. São os democratas que hoje, em geral, conduzem a agenda negra, na ala mais liberal da legenda. As principais pautas envolvem as liberdades e os direitos civis, como na luta pela eliminação das leis de identificação para votar e pelo fim da intervenção americana nas guerras do Oriente Médio, até porque uma significativa porcentagem dos militares são parte das comunidades pobres ou de minorias. Ostermeier diz que os republicanos negros, como o senador de Carolina do Sul, Tim Scott, e o deputado da Florida, Allen West, costumam votar com os conservadores, o que é reflexo do eleitorado mais branco deles. Medeiros lembra que foi o Partido Republicano quem instituiu o fim da escravidão, mas que hoje carrega a disputa interna de projetos políticos com a ala radical do Tea Party.

 

— Os negros antigamente tinham retratos do presidente Abraham Lincoln e associação com os republicanos. A partir dos anos 1950 e 1960, isso começou a mudar. Em 1980, Ronald Reagan trouxe a onda conservadora aos Estados Unidos. Os democratas começaram a puxar essa bandeira para si, o que não significa que todos sejam progressistas – pondera Medeiros.

 

Na visão de Ostermeier, criador do blog Smart Politics, os fatores para explicar a sub-representação negra incluem a pouca quantidade de candidatos negros aos cargos do alto escalão. Em parte, fruto de políticas racistas – o racismo estrutural – e do próprio senso comum do eleitorado, especialmente no Sul do país – o racismo cultural. Ele pondera que o preconceito tem diminuído significativamente nas últimas décadas e, por isso, prevê um gradual aumento da representação negra nas próximas gerações.

 

 

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